Dia 057 – Puerto Mado > Puerto Monte Carlo


Percurso:Rio Paraná
Início: Puerto Mado (Maria Magdalena), km 1.834, 26° 13.837’S 54° 37.802’W
Final: Puerto Monte Carlo, km 1.786, 26° 34.227’S 54° 47.877’W
Percorrido hoje: 47.9 km
Total Acumulado: 1509.7 km
Caminhada na Madrugada
Alessandro – Dormimos nessa última noite em um gramado de um clube de pesca. O frio começou a ficar mais expressivo esses dias.
Em relação a navegação, é perceptível que os barrancos beira rio começam a ficar um pouco mais baixos nesse trecho, em comparação a ontem quando os barrancos ainda eram íngremes e altos.
Sempre antes de partirmos nós temos uma certa quantidade de lixo acumulado. Em sua maioria envelopes de alimentos, etc. Normalmente sempre há por perto algum latão de lixo, mas nessa manhã eu não havia encontrado nenhum. Pedi ao Luciano, cara que toma conta do clube, para me dizer aonde havia um latão. Ele, sujeito muito gente boa, falou, com a maior naturalidade, que deixasse com ele o lixo que depois ele jogava no rio!!!!! Não dá nem para ficar bravo! Levei o lixo conosco até o outro porto. Infelizmente muitos habitantes ribeirinhos praticam a ideia de que o rio é um depósito de lixo e qualquer outra porcaria. Na cabeça deles o rio leva embora e pronto, está resolvido o problema. Espero que essa nova geração que está crescendo mude essa mentalidade nociva.
Chegamos em Monte Carlo e encontramos um outro clube de pesca onde armamos as barracas num gramado bem tranquilo, ao lado de um laguinho e um quiosque. Já havíamos montado acampamento quando umas garotas apareceram e disseram que haveria festa ali naquela noite… E minha barraca estava armada bem no local. Lá se foi a noite tranquila, e ao mesmo tempo… Oba! Festa e interação com outras pessoas! Então o Carlos e eu desmontamos as barracas e montamos elas mais pro fundo do camping, o mais longe possível do barulho, liberando o espaço para a festa deles. Seria a festa de despedida de um grupo de estudantes estrangeiros da Alemanha.
A noite e a hora da festa chegaram, e começou a chegar gente. Nada muito numeroso, umas trinta pessoas. O Carlos foi tentar dormir, apesar da música alta. Eu, convidado pelas meninas, me enturmei e aproveitei para conhecer gente e praticar meu castelhano. E ensinar os alemães e argentinos a fazer caipirinha, só que só tinha limão cravo/vinagre, longe do ideal para caipirinha, mas foi assim mesmo. Caipirinha com limão vinagre e frio, muito frio. Tocaram várias músicas brasileiras, muito apreciadas aqui na Argentina. Eu me entrosei com os alemães e conversamos em inglês, já que entre a gente o espanhol ainda era desafiador. Conversei com uma garota alemã, e ela disse que pagou apenas quatrocentos dólares para passar um mês e meio na Argentina, fazendo intercâmbio! O resto quem banca é a própria escola/governo alemão. Igualzinho no Brasil… Valeu o intercâmbio cultural. À uma hora da manhã a festa acabou. O frio estava com tudo essa noite. O sereno encharcou tudo que estava fora! Ainda bem que nos preparamos e prevemos esse frio. A tendência é piorar.
No grupo de alemães estava a Lydia, uma garota de 19 anos, com quem eu conversei mais. Ela achou muito legal a expedição de canoa, pois ela também gostava das atividades ao ar livre. No final da noite, na hora de ir embora, a anfitriã da Lydia e a Lydia iam embora de carona de carro. A distância até o vilarejo não era grande, e como a conversa estava boa e a gente ainda tinha bastante assunto, eu sugeri pra ela que eu acompanharia ela a pé, se ela se animasse de fazer uma caminhada na madrugada, para voltar pra casa onde ela estava ficando. Ela topou. Seriam uns três quilômetros até a casa da amiga (mais três pra eu voltar).
Então fomos andando. Saímos do camping beira rio caminhando em direção ao vilarejo, por um ambiente de estradinha rural, de asfalto mesmo. A estrada cortava uma área bem arborizada e plana. Nessa hora baixou uma névoa, que deu um aspecto ainda mais bucólico à caminhada, pois limitava vermos muito à frente do caminho. Fomos conversando e o tempo e a distância foram passando de maneira agradável em meio a uma caminhada numa madrugada fresquinha e tranquila. Foi então que saindo do meio da névoa, vindo da lateral direita da estrada, um cachorro Pastor alemão adulto e bem grande apareceu andando lentamente ao nosso encontro e se aproximou, convergindo seus passos na mesma direção que os nossos e passando a andar do nosso lado. Não tivemos medo, pelo contrário. Até cumprimentei o cachorro e fiz um agrado nele atrás da orelha, e a Lydia também ficou tranquila, pois não tinha medo de cachorro. E ele em nenhum momento fez qualquer gesto ameaçador. Eu e a Lydia então continuamos andando e o cachorro foi nos acompanhando muito tranquilamente andando do nosso lado, de forma bem companheira, tranquilo e amigável.
Já chegando nas primeiras casas do vilarejo, adentrando a área urbana, à medida que andávamos do lado direito da rua, surgiu do meio da névoa um grupo de três homens do outro lado da rua, parados em pé na calçada, bebendo e fumando, e com aparência não muito boa. Pararam de conversar e se voltaram para nossa direção quando nos vimos. Foi nesse momento que senti uma “energia estranha”, ameaçadora. Talvez o sentimento deles é que apareceu uma “oportunidade” caminhando do meio da névoa – um só cara e uma loirinha bonitinha no meio da madrugada. Imediatamente eu tive uma sensação nada boa, e senti que a Lydia sentiu o mesmo. Pois eles pararam de conversar e ficaram nos olhando fixamente. Eu cumprimentei formalmente, pra quebrar o gelo, mas a recíproca foi seca, nada confortante, apenas uma erguida de queixo, sem verbalizar nada, e nada que nos fizesse sentir menos ameaçados. Senti que a Lydia também ficou um tanto incomodada e insegura. O clima não era nada bom e eu pensei que ali poderíamos estar numa situação perigosa. Nesse momento pensei que se eles viessem nos abordar e se pelo menos não estivessem armados, eu poderia até “meter o loco” e dar algum trabalho, pois os caras não eram grandes e eu estava em boa forma. De repente estávamos numa situação tensa, e eu me senti responsável pela Lydia. E foi então nessa troca de olhares e observação rápida e mútua, eu e a Lydia mantendo o passo em frente, que percebi o olhar dos três caras em direção ao pastor alemão que nos acompanhava serenamente. O cachorro continuava andando com a gente, do meu lado esquerdo, e a Lydia estava no meu lado direito. O cachorro apenas levantou a cabeça e olhou para os três por um breve momento, o suficiente para eles perceberem que o cachorro estava consciente deles. Os três ficaram em silêncio e foram nos acompanhando com a cabeça. A Lydia e eu também ficamos em silêncio desde o primeiro momento, e continuamos andando. E assim nós, do ponto de vista deles, desaparecemos no meio da névoa. Eu olhei para trás algumas vezes para garantir que eles ficaram para trás. E ficaram. Então a Lydia e eu expressamos nosso alívio, pois ficou claro, mesmo sem palavras, que passamos por uma situação que poderia ter sido nada agradável. Ou talvez não. Mas realmente foi um sentimento estranho.
Depois de uma hora desde o camping, nós estávamos andando nas ruas de um bairro residencial e a névoa já tinha passado. E foi aí que o cachorro “se despediu” e virou numa outra rua, e sumiu tão repentinamente quanto apareceu pra gente uns vinte minutos atrás. Mais algumas quadras caminhando e chegamos na casa da anfitriã da Lydia, e a sua amiga saiu pra nos receber. Nos despedimos e eu voltei pelo mesmo caminho por onde viemos. Quando passei no mesmo lugar, os três sujeitos não estavam mais lá. Mais uma meia horinha de caminhada e por volta das duas da manhã eu estava na minha barraca no camping, no aconchego do meu saco de dormir me protegendo do friozinho, pensando na noite que passou. Foi uma noite agradável, agitada e em boa companhia. E essa foi uma noite que eu me lembro e conto para as pessoas quando me perguntam se eu já tive alguma experiência que me faz acreditar, de alguma forma, em “anjos da guarda” ou alguma intervenção e proteção por seres elevados. Pra mim ficou marcado que aquele cachorro não apareceu do nada por acaso.