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Origens & Preparativos

DE ONDE SURGIU A IDEIA DESSA EXPEDIÇÃO?

Eu costumo dizer que o rabo da cobra começa na cabeça. E o que eu quero dizer com essa expressão é que tem coisas do agora diretamente ligadas com algo mais distante no tempo. Muito do que acontece no presente é consequência inevitável de algo que começou lá no passado. É consequência de experiências e escolhas feitas no passado. Então vou começar do começo mesmo, onde acho que essa história teve uma verdadeira origem.

Nos anos 80, quando eu era pré-adolescente (sou de 1972), minha família se mudou para uma casa que dava de fundo para um bosque. Cortando esse bosque, a menos de 20 metros da casa, passava um riacho. Eu tinha 12 anos de idade quando nos mudamos para lá, e sempre empolgado por morar pegado a um bosque e um riacho, eu costumava sair depois da escola ou nos finais de semana pra explorar o bosque adentro, muitas vezes seguindo as margens do riacho pra chegar em outras áreas onde o bosque se abria mais ainda. Era uma experiência bacana ir vendo esquilos e pássaros diferentes, às vezes coelhos, e às vezes alguma pegada de algum outro bicho mais difícil de ver ao vivo na natureza. Levado pela curiosidade e sentimento de desbravador de adolescente, num sábado ou domingo qualquer, eu coloquei água e comida numa pequena mochila e desci da casa até a beira do riacho, disposto a caminhar riacho abaixo por uma manhã inteira se fosse necessário, determinado a ver até onde aquele riacho ia. Me lembro que eu pensei, ao começar a aventura daquele dia, nos amigos que iam gostar de estar juntos para explorar aquele caminho, mas que não estavam porque eu estava morando em outro país. O Carlos André e o Serginho eram meus melhores amigos com quem eu fazia as aventuras de crianças entrando na adolescência: Juntos a gente andava de bicicleta, escalava pedras nos cantos das praias nas férias de verão, explodia bombinhas em muros de terrenos baldios e outras coisas que pré-adolescentes fazem para ir sabendo mais sobre o mundo. Meus amigos de infância que compartilharam as descobertas e o gosto pela aventura.

Fui seguindo esse riacho pelo bosque.

Descendo seguindo o caminho daquele riacho, eu me senti nosso representante numa aventura solo, colocando em prática o nosso espírito e gosto pela aventura. E então fui descendo percorrendo as margens daquele curso de água bosque adentro. Era um caminho desobstruído. Passava por cima de um ou outro tronco. Eu escalava e descia por um ou outro barranco. No caminho vi outro riacho se juntar a esse que eu seguia. E continuei seguindo. Acho que andei por umas duas horas. E então para minha surpresa, levando menos tempo do que eu pensei que ia levar, eu cheguei a um grande rio onde o riacho deságua. Era um rio largo, lento, daqueles em que a margem oposta está a dezenas de metros. Amplo. Maior do que a minha imaginação de pré-adolescente. Fiquei lá um pouco curtindo a visão daquele enorme rio “que eu descobri”. Joguei algumas pedras o mais longe que conseguia jogar lá pro meio. Coisa de moleque. A minha missão daquele dia terminou ali. Consegui chegar até onde o pequeno riacho seguia. Para um garoto de 12 anos, sozinho, foi uma grande satisfação e conquista. Imaginei como meus amigos estariam orgulhosos da conquista que eu fiz em nome de nossa amizade. E então voltei andando pra casa por uma estrada de terra que dava numa outra estrada asfaltada que dava acesso à rua da minha casa. Por mais simples que tenha sido, foi uma sensação de orgulho e realização enorme de aventura e desbravamento. Eu queria saber e então eu saí andando e descobri sozinho aonde aquele riacho chegava!
Nos anos 90, já com vinte e poucos anos eu costumava pegar minha bicicleta e saía pra pedalar sempre que tinha algum tempo livre. Eu saía pedalando da minha casa no Parque Taquaral em Campinas e fazia passeios de cinquenta, setenta, noventa quilômetros explorando as estradas de terra de Campinas e dos municípios vizinhos nos finais de semana. Eu saía pra curtir o exercício, para contemplar as trilhas em meio a fazendas e mares de morros. Pedalava pra espairecer e usava esse tempo em cima da bicicleta também para me encontrar. Curtia escutar minhas coletâneas de música nas minhas fitas K7 num walkman que eu levava comigo. Pedalar pra mim tinha um quê de realização, era um relaxamento mental e depois físico. Era também uma espécie de ato de rebeldia, uma válvula de escape e um momento só meu. E eu pedalava muito.

Alessandro Casella, ponte sobre o Rio Atibaia.
Alessandro Casella. Ponte sobre o Rio Atibaia em Sousas, Campinas SP, alguns anos depois que a expedição já tinha acontecido.

Em um dia outubro ou novembro de 1997 eu estava em uma dessas pedaladas, retornando de uma volta grande pela região, passando por Sousas, distrito de Campinas SP, e parei sobre o Rio Atibaia, em cima de uma pequena ponte de ferro para pedestres. Em pé e com a bicicleta apoiada no meio das minhas pernas eu fiquei lá olhando o rio passar. Olhando no sentido rio abaixo. Era gostoso e relaxante ver o silêncio do rio passando. Combinava com o descansar. A água fluindo calma e lentamente levando algumas folhas e coisas que uma água marrom de rio costuma levar. Deixei meus olhos distraídos observando o passar da água. E minha mente, como de costume, viajou pra outro lugar, para outro foco, outra atenção: Naquela época, não somente naquele dia, eu estava me sentindo meio desencontrado, talvez algo comum para um sonhador de 25 anos. Sentia-me preocupado em busca do meu caminho. Naquela fase eu estava me permitindo uma certa liberdade sem urgência, mas sentia que tinha que definir o que eu “deveria fazer da vida”. Seguir alguma carreira? Voltar a fazer uma faculdade? Junte a essas inseguranças e incertezas existenciais outras coisas menores porém influenciáveis como um abalo emocional por conta de uma paixão recente que não tinha vingado. Eu tinha também aquela coisa de “não querer viver uma vida igual a todo mundo”, que era coisa de ego de jovem adulto buscando originalidade. Outra coisa: Eu já gostava muito de esportes de aventura, adorava acampar, viajar de bicicleta, explorar a represa de Nazaré Paulista em Atibaia com os amigos usando uma barquinho de alumínio com motor de popa de 10 hp. Com essa predisposição eu me influenciei bastante pelas palavras e pensamentos dos livros do Amyr Klink. Assim como nos livros dele, a leitura de tantos autores de viagens de aventura me inspiraram a querer viajar e conhecer o mundo. Eu saía para pedalar para espairecer, mas levava sempre comigo todas essas dúvidas, dilemas e inquietações.
Nos meus vinte e poucos anos eu sentia claramente o conflito de duas forças bem básicas que atuavam sobre mim, em sentidos opostos: Dar satisfação ao que meus pais e a sociedade esperavam de mim (e isso em si já é bastante confuso), abraçando basicamente as tradições e caminhos esperados, OU tentar alimentar uma busca pessoal um tanto mais incerta, mas que me desse um sentimento de realização mais original, mais genuíno, “seguindo meu chamado”, seja lá o que fosse isso exatamente, com conquistas mais minhas. Essa era a minha cabeça naquela época. Nada exclusivo. Muita gente passa por fases e crises assim, e era o momento no qual eu me encontrava. Meus olhos vendo o rio passar, e eu em pé ali na ponte com essas coisas no fundo dos meus pensamentos. Talvez não pensando especificamente naquele momento sobre isso, mas naquela época era o que embasava minhas crises existenciais.
E então, assim como um filme na televisão é interrompido repentinamente por um corte de energia e a gente de repente olha para fora da janela e pro dia bonito lá fora, voltando pra realidade no presente, eu voltei minha presença e atenção para a água do rio passando abaixo de mim. Sem perceber, naqueles minutos ali, enquanto devaneava na minha crise existencial, minha curiosidade pragmática me soltou uma pergunta, interrompendo todos aqueles pensamentos “barulhentos”, como alguém que cala uma pessoa falando um monte de baboseiras apresentando uma pergunta cuja resposta é desafiadora porém acessível: “Por onde passa a água desse rio no seu caminho pro mar?”. Olhei com mais atenção para o Rio Atibaia: “Como são as paisagens pelo caminho que ela faz? Onde estará daqui a uma semana? Daqui a um mês? Quanto tempo esse rio leva pra levar toda essa água até o seu destino final?”.
Senti um eco daquele dia nos anos 80, quando tão naturalmente eu quis desbravar o caminho que o riacho percorria até seu destino. E eu senti uma predisposição natural para tentar descobrir por conta própria a resposta. Foi uma sensação de despertar, como quando as pupilas dilatam e o mundo fica mais claro, um pouco mais iluminado. Senti uma nova instigação e o surgimento de uma possibilidade – Percorrer o caminho que as águas da chuva fazem de Campinas até o mar. Me pareceu algo incomum, uma possibilidade de aventura muito atraente pra mim! Ir pelos rios até o oceano tinha grandes chances de ser muito diferente dos caminhos convencionais de terra ou asfalto por onde todo mundo passa. Ali na minha frente, rio abaixo, tinha uma estrada de água aberta, pronta e praticamente deserta, quase sem ninguém nela. Uma oportunidade de um caminho relativamente acessível, diferente e provavelmente interessante. Talvez algo pra nutrir um sentimento de conquista que eu estava querendo ou precisando. Um rumo. Só que eu não ia andar. Iria remar. Remar até o mar!

AMADURECENDO A IDEIA

Nos dias e semanas seguintes passei a desenvolver a ideia e a planejar – Comecei a pensar quais seriam os desafios a serem resolvidos antes e provavelmente durante a possível viagem. Logo de cara eu não sabia exatamente o que eu ia usar pra descer o rio. Claro que eu não iria andar a pé pelas margens. O caminho seria percorrido pela água mesmo. Por saber que tinha algumas correntezas mais fortes no Rio Atibaia eu pensei que talvez pudesse ser um bote inflável, desses usados em rafting. Mas o bote para as corredeiras funciona bem em água com correnteza forte. Para remar em águas mais tranquilas ou represas é péssimo; pesado e sem eficiência hidrodinâmica alguma. Pensei em caiaque. Era uma possibilidade também. Dei uma pesquisada na internet e acabei vendo também sobre canoas. Uma canoa pode levar mais carga do que um caiaque, apesar de não tão veloz quanto. Mas se eu não tivesse pressa, tudo bem. Em paralelo eu dei uma olhada no mapa para ver o caminho que o Rio Atibaia fazia até o mar. Peguei um mapa impresso mesmo, já que naquela época não tinha a praticidade do Google Maps. Meu dedo foi seguindo a linha azul no mapa… Rio Atibaia… Rio Piracicaba… Rio Tietê… Rio Paraná… e o litoral ficando cada vez mais longe à medida que meu dedo seguia sentido interior do estado. Daí o Rio Paraná seguia sentido sudoeste, passando por dentro da Argentina e daí saindo no mar. O caminho tinha mais de três mil quilômetros! Definitivamente eu não iria querer arrastar um trambolho de um bote inflável por mais de três mil quilômetros. Com o tempo e pesquisas, cheguei à conclusão que uma canoa modelo canadense teria capacidade de carga e a hidrodinâmica adequada para uma expedição desse porte. Só que teria de ser uma canoa importada, pois aqui no Brasil os modelos mais modernos ainda eram feitos em fibra de vidro e o desenho do casco deixava um pouco a desejar em termos de desempenho. Nos Estados Unidos e Canadá já tinham modelos feitos de fibra de carbono e com projeto específico para longas expedições.
Na época que essa ideia surgiu eu era monitor do muro de escalada na Toca da Montanha, uma loja de equipamentos de aventura no Cambuí, bairro de Campinas. Além de loja e muro de escalada, lá acabava sendo também um ponto de encontro com outras pessoas que também curtiam esportes e atividades de aventura na natureza. Comecei a compartilhar a ideia de descer os rios com alguns amigos e conhecidos, para ver se alguém se animava a ir junto. Até então não tinha pensado se seria uma dupla, um grupo, ou solo. A ideia estava tomando forma ainda. Dois amigos que escalavam na época, o Thiaguinho e o Zão, que remavam no Rio Atibaia através do Clube de Remo de Sousas gostaram da ideia, mas a motivação deles talvez não tenha sido na mesma intensidade que a minha. Nem as prioridades. Para eles seria inviável.
Convidei amigos mais próximos. Muitos riram da ideia e do convite, e de alguns eu escutava até um “cê tá loco”. Alguns achavam legal e ficavam tentados, mas cada um por seu motivo não se animou de ir. Teve até o caso de um amigo que convidei na época, e que anos mais tarde ele admitiu pra mim que apesar de ter ficado com muita vontade, ele não foi por medo. Ele admitiu que não tinha coragem de sair remando no desconhecido e acampando no meio do nada.
Um dos amigos que eu teria convidado teria sido o Carlos André, amigo de infância que fez parte dos meus pensamentos quando fui fazer a caminhada sozinho, com 12 anos de idade, para descobrir o caminho que o riacho fazia (leia aqui em “De onde surgiu a ideia da expedição”). O Carlos tinha se tornado parceiro de várias aventuras, de escaladas e viagens de bicicleta. Só que ele, um dos meus melhores amigos, faleceu num acidente de carro no ano anterior. A morte de um amigo tão próximo, no auge de nossa juventude, contribuiu também para me fazer pensar que de fato a gente não dura pra sempre, que nossa vida é vulnerável e frágil, e que devemos fazer o melhor de nosso tempo aqui nesse planeta. E que descer um rio a remo não é uma ideia insana, mas uma aventura a ser vivida como parte de valorizar a liberdade na minha vida.
Enfim, cada convite recusado teve seu motivo, seu racional, seu processo de ponderação. Cheguei a pensar, e não via problemas nisso, em fazer a viagem sozinho mesmo. Passou alguns meses, e nisso eu já tinha o projeto bem detalhado e escrito. E sem urgência em definir se seria uma viagem solo ou não, eu mantive a possibilidade de mais gente se juntar a mim. Seria mais divertido talvez, e mais seguro com certeza, ter alguém para compartilhar o dia a dia da viagem de canoa.

Nesse período eu também percebi que ia precisar de alguma forma de patrocínio, pois teria que comprar equipamentos específicos. Só a importação de uma canoa já seria um custo considerável. E tinha também os custos de pelo menos 3 meses de alimentação e alguns outros custos logísticos. Já que era um projeto inusitado, eu considerava que havia uma boa chance de ser atraente para alguma empresa ou marca que quisesse associar o nome a um desafio e feito diferente. Então comecei a escrever o projeto batizado temporariamente de “Projeto Descendo os Rios”. Montei ele num formato de proposta de patrocínio. Com o passar do tempo eu pensei e acabei pensando em um nome mais sonoro, mais poético. Então defini que se chamaria “Projeto Remar até o Mar”, que virou “Expedição Remar até o Mar”.
Nessa fase eu comentei com o amigo Carlos Vageler, que também frequentava a Toca da Montanha, sobre meus planos. Eu conheci o Carlos através do amigo Douglas Fernandes, da academia Along Center, onde anos antes eu tinha feito um curso de escalada. Foi o Carlos que tinha dado o curso. O Carlos ficou intrigado com a ideia de descer os rios de Canoa saindo de Campinas, e dias depois me disse que animava participar e aceitou meu convite. E então juntos começamos a correr atrás de patrocínio e planejar mais a fundo a expedição.

BUSCA DE PATROCÍNIO – O MAIS DESGASTANTE DE TODO O PROJETO

Começamos a entrar em contato com várias empresas, tanto as pequenas aqui da região quanto as multinacionais com marcas já estabelecidas. Fomos tentando marcar alguma reunião para apresentar o projeto. Vimos a possibilidade de abordar uma temática ambiental durante a expedição. De relatar e documentar durante a viagem o nosso testemunho sobre as condições dos rios e represas por onde passamos. Naquela fase fizemos contato com pessoas nos meios de comunicação como o jornalista José Pedro Martins do Correio Popular de Campinas, e a Liana John da Agência Estado e Rádio Eldorado, que ajudaram a divulgar nosso projeto. O Roberto Fernandes do portal de aventuras na internet, o 360 Graus, que na época produzia o site do Amyr Klink, também aderiu ao nosso projeto. O site da nossa expedição seria o primeiro no Brasil a ser atualizado durante a viagem. O Evaristo Miranda da Embrapa também simpatizou com nosso projeto e disponibilizou imagens de satélite de alguns trechos do percurso para colocarmos no site durante a viagem. Enfim, várias instituições e meios de comunicação demonstraram interesse em apoiar e divulgar a nossa viagem. Tínhamos vários apoios ou intenções de apoio depois de vários meses batalhando para dar forma ao projeto. Mas faltava alguém patrocinar com dinheiro, para comprarmos os equipamentos necessários, como a canoa por exemplo, e cobrir os custos operacionais, como alimentação.
Foram muitos faxes e cartas e envelopes com projetos encadernados enviados para Itaú, Santander, Toyota, Coca Cola, Nestlé, Yoki, Merck Sharp, Ripasa, Arisco, Parmalat, Gessy Lever, Cica, Rhodia, IBM, Toddy, Nescau, Gatorade, Ford, GM, Natura, Bradesco, etc. etc. E muitos faxes polidos e educados apreciando a grandiosidade do projeto, desejando sucesso porém sem possibilidade ou interesse em participar. Foi um processo de mais de ano tentando manter a esperança acesa.

O PRIMEIRO PATROCÍNIO

Nesse período de desenvolvimento do projeto eu conheci e comecei a namorar a Janaina. Nessa época ela começou a trabalhar na Bosch em Campinas. Um dia eu tinha escrito e diagramado a proposta de patrocínio para um formato de uma página de fax, e liguei pra Janaina pedindo pra ela dar uma revisada pra mim. Ela me passou o número do fax do trabalho e eu enviei pra ela. Passou meia hora e ela ligou perguntando se eu já tinha mandado. “Ué, sim, você não recebeu?” – “Não. Manda de novo” – “Ok.” – Reenviei – “Ok, agora recebi”. E ficou por isso mesmo. Ela corrigiu uma ou outra palavra errada que eu deixei escapar e eu arrumei o texto, para mandar para alguma empresas na minha lista.
Umas duas semanas depois eu recebi uma ligação: “Bom dia Alessandro, tudo bem? Meu nome é Creuza e eu sou do marketing da divisão de ferramentas elétricas da Bosch e estou aqui com um fax que você nos enviou pedindo patrocínio. Muito interessante esse teu projeto! Sorte sua que a nossa estagiária estava em outro departamento quando viu esse fax chegando por lá. Como ela viu que o fax chegou no departamento errado ela o trouxe pra cá. A gente avaliou o teu projeto e gostaríamos de ajudar. Queremos participar com a cota de dois mil reais e disponibilizar algumas ferramentas elétricas pra vocês. O que você acha?”. Logo depois eu liguei pra Janaina e contei porque ela não tinha recebido o primeiro fax!
E foi assim que começou a mudar nossa sorte. Depois de muitos meses, finalmente o primeiro patrocínio. Em seguida, a Fundação Educar DPaschoal também entrou no projeto com uma quantia em dinheiro. E na sequência outras empresas. O Ademar, que era trainee na Fundação Educar DPaschoal, estava envolvido com uma empresa em formação na época, de rastreamento veicular, a OrbSystem, e eles também se interessaram em participar com alguns equipamentos eletrônicos. Eles nos deram o notebook que a gente viria a usar para escrever os diários da viagem e armazenar fotos digitais da máquina digital que a Kodak viria a fornecer. O Edward Bilton, diretor da Cia Athletica do Galleria Shopping em Campinas, nos apoiou com livre acesso à academia até o início da expedição pra gente se preparar para os vários meses de remada que estavam por vir, mais cedo ou mais tarde. Nos Estados Unidos o Michael Ketchel da Mad River Canoe gostou muito do projeto, pois seria uma longa expedição usando uma de suas canoas, e conseguiu fornecer a canoa e acessórios a preço de custo (Infelizmente quando a expedição começou o Michael da Mad River tinha saído do seu cargo, e o marketing da Mad River Canoes não deu continuidade em seu contato com a gente acabou não acompanhando o andar da nossa expedição por aqui). Através do apoio da ABSA e da South Florida Air, conseguimos trazer a canoa de avião. Boa parte de nossos equipamentos da expedição, de fogareiros a barracas, panelas, sacos de dormir, lanternas e isolantes térmicos nós compramos na Serelepe em São Paulo; O Francisco Chorroarin, dono da loja, Argentino, também simpatizou com nossa proposta de descer até Buenos Aires remando uma canoa e nos deu um generoso desconto na aquisição dos equipamentos. A Kodak, através da atenção do Richard Ford, nos forneceu uma máquina digital e vários rolos de filme negativo e positivo, o que foi uma contribuição fundamental para podermos gerar todas as imagens que iríamos registrar durante a viagem. Inclusive a máquina digital na época era uma novidade, e ia possibilitar alimentar o site com fotos sem precisar passar pelo processo de escaneamento.
Nesse período a gente foi muito a São Paulo para apresentar o projeto e discutir as possibilidades com possíveis patrocinadores. A diretoria da CESP por exemplo, que administra todas as barragens pelas quais iríamos passar ao longo do Rio Tietê, se interessou. Em janeiro de 1999, cinco meses antes do mês estabelecido para nosso início, o diretor do departamento de comunicação da CESP nos disse em reunião, pessoalmente, que o projeto era excelente, que poderia ser utilizado pelo departamento de comunicação da CESP e que eles iam participar com uma cota, integral ou parcial, para nossa expedição. Ficamos muito animados, pois o que entraria de dinheiro ajudaria a cobrir os custos mínimos que a gente tinha estipulado para fazer a expedição acontecer. Com mais de um ano buscando patrocínio, sem conseguir cobrir uma cota master, a gente foi enxugando o projeto: Por exemplo, eu havia desenvolvido o Projeto Remar Kids, através do qual a gente ia manter contato com escolas participantes antes, durante e depois da expedição de canoa pelos rios, repassando para a crianças muito do conteúdo educacional da expedição. Mas por motivos de valores não alcançados, mal estávamos conseguindo um mínimo para equipamentos e alimentação, nós engavetamos o Remar Kids. A informação de que a CESP iria participar com uma quantia em dinheiro era ótima! Quem sabe o Remar Kids pudesse ser colocado em prática? Porém, depois daquela reunião, os dias passaram e não fizeram contato. Passaram algumas semanas. Passou mais de mês e estávamos tentando um follow up. Nada. Só depois de uns três meses insistindo é que nos retornaram confirmando o que já estávamos prevendo: A CESP voltou atrás e não participaria mais. Houve naquele período uma reestruturação interna de pessoal e nosso projeto foi esquecido. A essa altura já estávamos calejados pelas negativas. Ficamos tristes, porém continuamos determinados a colocar a canoa na água pra fazer a viagem naquele ano mesmo.

O PROJETO SE CONSOLIDOU

Através dessa matéria de jornal, meus pais ficaram sabendo dos meus planos.

Em casa ninguém estava sabendo dos meus planos. Tinha sido tudo em sigilo até então. Porque eu sei que meus pais, principalmente meu pai, iria falar que era loucura, que era irresponsabilidade, que era falta do que fazer e por aí vai. Eu não queria o fardo emocional do balde e água fria vindo dos meus pais. Então nunca contei pra eles, até chegar o momento que era inevitável eles saberem. E isso aconteceu em março de 98, na forma de uma matéria de meia página no jornal Folha de São Paulo, numa edição de domingo. O jornalista Maurício Simionato publicou no Jornal Folha Campinas uma matéria com a chamada “Dupla quer remar até a Argentina” e logo abaixo uma foto onde eu e o Carlos estávamos dentro de uma canoa. Esse jornal chegou em casa e eu fiquei de olho sabendo que meu pai ia chegar naquela notícia, e fiquei observando ele, sentado na varanda lendo o jornal. E então eu vi meu pai abrindo o jornal naquela página e lendo a matéria. E eu vi a cara dele expressando uma certa confusão, uma cara de “Ué??”, sem assimilar ou entender direito o que ele tinha lido. Aliás, ele entendeu. A dificuldade parece ter sido associar o filho dele com a pessoa que estava sendo mencionada na matéria, que ia fazer a tal viagem de canoa até Buenos Aires. A minha mãe estava lá e meu pai mostrou a matéria pra ela, e eles se viraram para mim. Expliquei então o projeto para eles. Contei sobre as pessoas e empresas que já estavam envolvidas, a duração, e por aí vai. Até hoje não sei dizer o que realmente pensaram de positivo ou de negativo, sobre a ideia e sobre o filho deles. Mas tenho a impressão de que por um lado eles se sentiram entretidos e sem palavras sobre a novidade. Acho que a palavra “estupefato” me vem à mente agora, lembrando da expressão do meu pai na ocasião.

O tempo passou, e mais uma vez cito o sábio provérbio chinês: “A não ser que a gente mude de direção, a tendência é chegar onde estamos indo.” Já havia passado pouco mais de um ano desde aquele dia na ponte em Sousas. Muitos contatos haviam sido feitos, equipamentos providenciados, gente envolvida e não tinha mais volta. No início do ano de 1999 nós marcamos a data de partida para Junho do mesmo ano.

ARRANJOS FINAIS 

A canoa veio dos Estados Unidos. Depois das negociações com a Mad River Canoe e procedimentos de seleção e compra dela e dos acessórios, e do transporte aéreo providenciado pela ABSA e South Florida Air, ela veio do estado de Vermont no nordeste dos Estados Unidos até o aeroporto de Viracopos em Campinas, passando pela Flórida. Aterrissou no Brasil no dia 31 de março de 1999. Pelo tamanho dela, quase 6 metros de comprimento, o transporte aéreo teria custado uma fortuna, o equivalente ao transporte de 6 toneladas, ou 6 metros cúbicos, que foi o seu volume. Felizmente o pessoal da ABSA foi generoso e fez esse transporte pra gente. E felizmente ela pesa apenas 28 kg.

Canoa e remos recém chegados dos Estados Unidos.

Após o processo de liberação da importação nós fomos buscar a canoa em 15 de Abril, faltando exatos cinquenta dias para o início de nossa viagem. A canoa estava embrulhada em plástico bolha azul. E quando cheguei nela, ainda no galpão de mercadorias importadas, eu tirei o plástico da proa (frente da canoa) pra tocar nela. E quando fiz isso meu coração quase parou e pensei “FUDEU!”. Eu senti ela muito frágil! A parte do caso que toquei parecia um papelão endurecido – Aquela parte da proa, o material, era fino demais!!! Eu olhei para aquilo e pensei que foi um erro, que essa canoa era algo que não ia aguentar uma viagem daquela dimensão. Pensei que me mandaram a canoa errada. Não podia ser! Tive a péssima impressão de arrependimento, de que sem saber eu comprei um equipamento muito frágil, inadequado. E não tinha o que fazer. Depois de todo aquele trabalho a canoa já estava aqui. Mas me deixa dizer logo: Foi um erro meu! Ignorância minha! Era uma canoa de Kevlar, uma fibra de carbono desenvolvida pela DuPont. E eu não tinha nenhuma familiaridade com aquele tipo de material e errei feio naquele primeiro julgamento. Felizmente! A canoa com seus 5.6 metros pesava apenas 28 kg! E o Kevlar é o mesmo material usado em coletes a prova de balas, na construção de satélites, equipamentos olímpicos de ponta e tantas outras coisas fabricadas com tecnologia avançada. Levamos a canoa para minha casa, e lá deu pra ver o quanto ela era reforçada em vários pontos; a rigidez e espessura do seu fundo. O reforço na base das laterais. E aí que eu vi que aquele ponto onde coloquei a mão, meu primeiro contato, era realmente a parte com menor espessura, pois era o ponto da canoa que recebe menos estresse mecânico quando está em uso. Ela na verdade era perfeita! Linda, leve e robusta!! Essa canoa seria o nosso transporte, na qual iríamos confiar nossas vidas por mais de 3 meses, em situações das mais adversas de água e clima. Eu batizei a canoa com o nome da minha querida avó materna escocesa: Ethel.
O Roberto Fernandes, da 360 Graus, que ia cuidar e alimentar o site durante nossa viagem tinha o contato com o Amyr Klink, pois também cuidava do site dele. Através do Roberto o Amyr Klink doou para o nosso projeto uma grande quantidade de comida liofilizada que a Nutrilatina havia produzido e patrocinado para a sua viagem de veleiro ao redor do mundo na região da Antártida, e que havia sobrado. Isso foi muito bem vindo, pois teríamos como levar comida leve e sem necessidade de refrigeração, sem contar a grande economia que faríamos no gasto com comida ao longo do caminho. Recebemos também várias caixas de barrinhas de cereais Nutry. Aos poucos, e cada vez mais próximo da data de partida, o essencial estava gradualmente sendo resolvido. Graças ao nosso esforço, incluindo a grande ajuda e dedicação da noiva do Carlos, a Alessandra Bonafé, que agilizou e correu atrás de tantos contatos, parcerias e imprensa.

A canoa e os remos, nossos principais coadjuvantes, já estavam com a gente. Determinamos então finalmente a data de início: Seria no sábado dia 5 de junho, dia Mundial do Meio Ambiente. Fiz contato com o subprefeito de Sousas e reservei a Praça Beira Rio para a manhã de nossa partida. A imprensa foi avisada e convidamos nossos amigos, conhecidos e parceiros do projeto para acompanharem a nossa partida. E também começamos a divulgar o site para quem quisesse acompanhar a expedição ao longo dos meses. (Na época era www.remar.com.br, e atualmente é www.remarateomar.com)

ENTRE A FÉ E A LOUCURA

Um ano e meio de preparativos. Desde o dia que resolvi que ia descer remando até Buenos Aires, esse projeto passou a ser um foco de atenção constante pra mim. Eu sei que muitos amigos acharam que eu tinha enlouquecido por causa dessa ideia. Enlouquecido no sentido de ter perdido noção da realidade, de ter perdido noção do que é viável, do que é possível. Enlouquecido no sentido de me tornar insensato. Mas tudo bem. A gente prova o possível através do exemplo. Essas coisas apenas não fazem parte da rotina da maioria das pessoas. Eu aprendi faz tempo a jamais dar ouvidos para quem nunca ousou abrir as próprias asas ao vento. Até acontecer e definir a data de partida, realmente parecia a busca por um sonho insano aos olhos dos outros. Uma busca insensata por uma utopia. Projeto remar até o mar… Projeto remar até o mar. Esse foi meu assunto predominante por um ano e meio. Quantas vezes essa fala saiu da minha boca, com amigos e com a namorada: Projeto Remar Até o Mar.
O namoro com a Janaina já tinha terminado em novembro de 1998. Naturalmente cada um seguiu consciente o seu caminho. Ficou o respeito, admiração e o carinho. Naquele período de um ano que namoramos a Janaina escutava sempre “…projeto remar até o mar”. Até eu não aguentava mais, imagina ela. Não foi fácil pra quem estava comigo. Amigos me julgavam meio perdido. Acreditar em si próprio quando se tem uma visão que os outros não compartilham já é difícil. Imagina para os outros acreditarem em você. Mas deu certo. Ter tido fé, esperança e paciência valeu a pena. Duas semanas antes de começar a viagem eu liguei pra Janaina, que já estava noiva e com casamento marcado, pra dizer que o Projeto Remar Até o Mar ia deixar de ser apenas projeto. Agora era Expedição Remar Até o Mar, com data de partida marcada para o dia 5 de junho. Ela veio em casa pra gente se despedir, e eu pude mostrar o quanto tudo estava se concretizando – A canoa que seria utilizada estava lá, e também os equipamentos obtidos graças às empresas que estavam acreditando no projeto. Falei sobre o tanto de gente envolvida e a proporção que o meu projeto havia tomado. Eu sentia que devia isso a ela. Algo em mim quis dizer pra ela que ela não tinha perdido tempo com um mero sonhador. Mas que eu precisei de tempo para fazer o meu sonho acontecer. E tive que fazer sacrifícios. E foi uma paz pra mim poder fazer isso, mostrar pra ela que finalmente tinha dado certo. E ela também tinha boas notícias de seus sonhos se concretizando: Assim como eu começaria a expedição no sábado dia 5 de Junho, ela iria se casar no sábado seguinte, dia 12 de Junho, e iria se mudar com o marido para os Estados Unidos. Sou grato acima de tudo pela amizade e respeito mútuo que tivemos o privilégio de exercer. E sinto que teve algo de grandioso e verdadeiro em cada um saber seguir o seu caminho, e ter aproveitado para crescer um com o outro enquanto estávamos juntos.

NÃO FALTAVA MAIS NADA

Primeiras impressões da canoa: Na piscina.

Nas semanas e dias antes da data de partida da viagem eu e o Carlos testamos os equipamentos e a canoa carregada dentro da piscina. Testamos a impermeabilidade das barricas e bolsas estanques. Idealmente tudo na canoa deve ficar acomodado e preso de maneira que se ela virar em qualquer momento nossa única preocupação será desvirar a canoa, nadar até alguma margem puxando ou empurrando ela e depois tirar a água. E continuar remando. Mesmo tombada a canoa cheia de água não afunda, pois tem ar aprisionado nas bagagens o suficiente para garantir que o conjunto todo continue boiando como uma peça só. A última coisa que eu iria querer fazer é sair catando um monte de equipamento molhado boiando no meio de um rio ou represa.

Então tudo foi projetado para ficar preso na canoa e seco caso ela virasse. Por isso vários testes e estudos de arranjos e amarração dos equipamentos. Tentamos pensar em tudo que poderia dar errado e como evitar e como remediar. O que fazer em caso de chuva, pra não encher a canoa de água. Em caso de ondas. Tentamos antecipar vários cenários, e o que poderíamos fazer para resolver o problema de cada um. Que equipamento ou acessório ou procedimento seria colocado em prática. Foi um exercício e planejamento para dar a menor chance de acontecer falhas que poderiam comprometer a expedição.

A natureza das águas que formam um rio é escorrer pelo relevo na passagem de menor resistência, rumo abaixo, às vezes preenchendo lagos ou represas, mas sempre com a tendência de continuar escorrendo e chegar até algum mar ou oceano. Como diz então o sábio ditado chinês: “A não ser que a gente mude de direção, a tendência é a gente chegar aonde estamos indo”.

Canoa e remos, check. Remos reserva, check. Um rio longo e vasto como uma extensa estrada aberta e desimpedida, check. Saúde. Disposição. Comida para meses. Apoios estabelecidos. Local, data e horário de partida estabelecidos, check, check, check, check, check, check… Liberdade para partir? Tempo para se viver? Não faltava mais nada. O mais complicado passou. Nós fizemos, e nos tornamos prontos para começar a remar até o mar.

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