Dia 04, Faz. do Guido, Represa de Salto Grande > Rancho do Paulo, Sta. Bárbara D’Oeste
8 de Junho, 1999
Rio Atibaia e Rio Piracicaba
Início: Usina Hidroelétrica de Americana – Represa de Salto Grande
22° 41.640’S 47° 17.445’W
Final: Santa Bárbara D’Oeste, Rancho do Paulo, próximo a Caiubí
22° 43.788’S 47° 27.329’W
Percorrido Hoje: 24.2 km
Total Acumulado: 64.5 km
Encontro Assustador
Alessandro – Percorrendo o rio nesta tarde de hoje tivemos um impasse grande, um momento de necessidade de escolha e tomada de decisão diante de riscos. Entre duas opções “ruíns”, tivemos de decidir pelo menos pior. Isso aconteceu quando nós percebemos mais à nossa frente um trecho de uns duzentos metros do Rio Piracicaba onde as corredeiras estavam evidentes. O trecho era em uma reta do rio passando por pedras. Algumas bem visíveis, outras denotadas pela água turbulenta. Era o tipo de trecho a ser evitado passar com a canoa, pois não só poderia provocar um capote, pela turbulência imprevisível do fluxo da água, como também uma colisão com as pedras poderia danificar a canoa de modo a acabar com a expedição.
Em trechos assim o melhor a fazer é encostar a canoa na margem e achar um caminho por terra paralelo ao rio, fazendo uma portagem para desviar do trecho de risco. Com isso em mente, ao nos aproximarmos, e uns 50 metros antes da corredeira iniciar, nós encostamos no barranco da esquerda do rio. Lá tinha um beiral de concreto e uma escada que levava pro alto do barranco, de uns 4 ou 5 metros. Na margem oposta, na direita, era só mato e barranco alto, praticamente impossível de encostar lá. Assim que encostamos no beiral de concreto, e já conversados sobre a necessidade de fazer a portagem por terra, o Carlos subiu pela escada para averiguar as possibilidades. Eu fiquei na canoa esperando. Nem um minuto passou e o Carlos veio descendo rapidinho a escadinha dizendo apressadamente algo como “Vambora, vambora…!”, contando que topou com um “altar de macumba” e era melhor sairmos dali. Claro que fiquei curioso e perguntei mais detalhes. Ele disse que nem tinha ninguém, mas a macumba era macabra. E então eu quis ver com meus próprios olhos o que tinha deixado ele assustado daquele jeito.
Eu subi a escadinha e alcançando o alto do barranco eu cheguei numa clareira, na curva de uma estradinha de terra, que tinha de um lado um matagal e do outro um bosque de eucaliptos. Bem nessa curva da estradinha tinha um Chevette velho estacionado, de frente para uma pequena mureta baixa de cimento. Nessa mureta e no chão tinha velas derretidas, cálices com o que parecia ser um vinho bem escuro dentro, várias fotos de pessoas e recortes de jornais e revistas espalhado pelo chão. No meio disso tudo, uns dois ou três crânios humanos de cera, e mais algumas coisas que não lembro. Mas era evidentemente um pequeno altar montado para um ritual. No capô do Chevette tinha algumas roupas largadas. Olhei em volta para ver se via alguém, e não tinha ninguém. Era tudo bem misterioso e senti uma apreensão. Devia ter gente por perto. Meu objetivo era achar um caminho alternativo por terra, e vi que esse caminho poderia ser seguir essa estradinha. Ela entrava no bosque de eucaliptos que formava como um túnel, e que corria paralela ao rio abaixo. Então comecei a andar naquela direção. Dei poucos passos quando bem lá na frente, no fundo desse corredor de árvores, eu vi a movimentação de algumas pessoas, a quase uns cem metros, que de repente pararam e olharam na minha direção. Eu parei. Olhei por alguns segundos e voltei para trás. Eu senti que ali, naquele momento, eu não tinha controle da situação, e as variáveis e caminhos que aquele encontro podia levar, tinham muita imprevisibilidade. Eu desci a escadinha dizendo pro Carlos “Tem gente alí, vambora.” O Carlos já estava dentro da canoa esperando, pronto para sair de lá. Eu entrei na canoa e remamos para o meio do rio, nos afastando daquela margem esquerda. A gente precisava reavaliar a situação.
Ficamos remando contra a correnteza leve no meio do rio, ficando parados no lugar enquanto a gente conversava sobre o que fazer. Não tinha como encostar na outra margem, pois era uma mata bem densa. Para frente a correnteza e as pedras. Rio acima não dava pra ir, porque apesar de não ser muito forte, ainda era remar contra a correnteza, e não tinha muito para onde ir. Estávamos em um setor de canaleta do rio. Nisso olhamos para o beiral de concreto e umas pessoas estavam chegando nele descendo pela escadinha, e essas quatro ou cinco pessoas ficaram em pé lá, nos olhando. A gente estava no meio do rio, mantendo a canoa no lugar, a uns quarenta metros deles, olhando. Tinha dois homens bem magros, um adolescente, e uma senhora meio gorda, com um vestido e pano na cabeça, bem ao estereótipo de uma velha cigana. De longe dava pra ver seus colares, brincos e pulseiras brilhantes. Ficamos trocando olhares. Não acenamos, eles não acenaram. Era estranho olhar para essas pessoas e ao mesmo tempo fingir que não estávamos reparando neles. Parecia que a gente estava fingindo algum propósito ao estarmos remando no lugar ali no meio do rio, quando na verdade a gente sentiu uma enorme insegurança, e talvez até uma ameaça, pois era um grupo de pessoas com intenções desconhecidas. Claramente eles nos olhavam e faziam comentários entre eles. E a gente ali, fingindo que estava procurando alguma coisa na água, nas margens, observando eles com os cantos dos olhos, questionando entre nós dois, quem poderiam ser essas pessoas e que tipo de ameaça poderiam ser. Ficamos assim por alguns minutos. Nós sem resposta, e eles sem respostas. E então eles subiram a escada e sumiram lá pra cima do barranco.
A gente ficou no meio do rio, remando contra a correnteza para ficarmos parados no lugar. E nesse período avaliando e tentando chegar a uma decisão: Enfrentar as corredeiras ou a incerteza das intenções dessas pessoas, se é que eles tinham algum tipo de intenção não favorável a nós. Depois de ponderar bastante meu posicionamento foi que eu respeito e temo mais a força inquestionável da natureza, que era naquele momento representada e manifestada pela correnteza de água do rio Piracicaba passando por uma corredor de pedras. Os riscos ali eram evidentes. Já sobre aquelas pessoas eu não sabia nada, não tinha certezas, e meu julgamento poderia estar sendo prejudicado por medo e inseguranças, por uma falta de controle. Então chegamos a um consenso: Vamos esperar um pouco e tentar novamente por terra.
Acho que esperamos uns 5 ou 10 minutos, tempo em que não vimos mais ninguém, e torcendo para que tivessem ido embora. E então voltamos a encostar a canoa no beiral de concreto na margem esquerda do rio. Subi pela escadinha e cheguei na “clareira da macumba”, no alto do barranco, na curva da estrada de terra. O carro não estava mais lá. O altar parecia ter menos coisas agora, como se tivessem levado embora alguns itens. Eles tinham ido embora. Senti um alívio. Sensação boa de poder continuar com o plano original. Achar um caminho por terra para chegar de volta ao rio depois das corredeiras. E então comecei a andar adentrando o bosque de eucaliptos, como um longo túnel de árvores bem alinhadas. Tinha ali uns cem metros para percorrer e lá no fundo, no fim desse túnel de árvores, parecia que ia abrir uma clareira, e fui andando com passos rápidos naquela direção. Quando eu estava a uns 20 metros, como se eu estivesse chegando no portal de saída do bosque, lá na frente apareceram uma, duas, três, mais pessoas. Eram as mesmas de antes. Eu parei. E eles, como alguém que pára na frente de uma passagem que você está prestes a atravessar, pararam lá, lado a lado. Me olhando. Umas cinco pessoas. A distância era o suficiente para a gente se olhar nos olhos. Por alguns segundos eu fiquei olhando eles apreensivo, e eles olhando para mim. E um silêncio desconfortável. Todo mundo sério. Eu não tinha como disfarçar. Não senti que eu poderia dar meia volta e sair correndo, e nem que eu devesse. E não senti que podia fazer de conta que nada estava acontecendo e ignorar. Eles estavam parados a uns dez metros na minha frente, me encarando. E foi nesse momento que eu precisei fazer algo.
“Tarrrde” – Disse eu (Estávamos na Região de Santa Bárbara D’Oeste, no interior paulista, onde o som do “r” é arrastado, bem no estilo estereótipo caipira mesmo). “Tarrrde” eles responderam, surpresos. E imediatamente parece que isso aliviou uma parte da tensão que era evidente naquele “confronto”. Rapidamente olhei tudo ao redor de maneira discreta. Eles estavam em pé na entrada da clareira, e atrás deles havia um tronco de árvore caído no chão, e mais duas pessoas sentadas nele. No chão, em frente ao tronco, tinha uma estrela desenhada com o que parecia ser pólvora (um pentagrama, para quem sabe que é). Ali no chão também umas velas vermelhas. Uma das pessoas sentadas no tronco da árvore era um homem gordinho, meio calvo, com um punhal espetado no tronco ao lado dele. O olhar dele era o mais desconfiado. Esse não cumprimentou. Ficou apenas olhando, sério. Na sequência olhei, brevemente um por um, nos olhos daquelas pessoas diante de mim, logo após o “tarrrde”, acenando com a cabeça e expressando um leve sorriso no sentido amigável. E para mim não tinha nenhuma outra opção a não ser agir com naturalidade e franqueza. E então eu falei, parado ali, diante deles, com um remo na mão, ainda vestindo o meu colete salva vidas com uma faca embainhada presa no peito, com chapéu e com uma presença que pare eles deveria parecer um alienígena – “Pessoal, me desculpa incomodar, eu e meu amigo estamos fazendo uma viagem de canoa pelo rio e ali na frente tem uma correnteza perigosa e não vai dar pra passar por ela. Então a gente precisa passar por aqui para chegar na parte que dá pra navegar”. Simples assim. Dito.
E então eles se entreolharam e foi a segunda onda de alívio da tensão, pois naquele momento um deles me olhou e perguntou – “Vocês querem ajuda?”. A situação toda desarmou. Parece que todos respiramos aliviados, mas bem discretamente. Eu falei em seguida – “Desculpa incomodar vocês. Eu entendo que a gente atrapalhou o ritual de vocês e lamento. Pra ser bem sincero a gente ficou um pouco assustado pois a gente encontrou vocês aqui do nada e eu não estou acostumado com isso, desculpa ter atrapalhado vocês”. E foi aí que um deles respondeu, rindo levemente agora menos tenso, e com sotaque carregado – “Ocê si assustô cô a gente?!? I nóis intão quando a gente viu ocê chegano??” – E então eu me dei conta que chegar num grupo no meio do mato, com um remo de madeira na mão e uma faca embainhada no peito não era a imagem mais tranquilizante. Todos sorrimos em silêncio.
A tensão se foi. O único que ainda parecia desconfiado era o gordinho sentado do lado do punhal, que ficou me olhando o tempo todo, mas não senti mais nenhum perigo iminente. A velha cigana esboçou um sorriso e os outros homens e o adolescente voltaram comigo até a canoa para ajudar a carregar os equipamentos para fazer a portagem. Na curta caminhada expliquei pra eles sobre a expedição e eles acharam legal. Pareciam contentes em ajudar. Levamos a canoa e tudo o mais para o próximo trecho navegável. Fizemos uma foto todos juntos. Eu e o Carlos entramos na canoa, nos despedimos acenando e seguimos rio abaixo.
Minha melhor decisão foi falar com franqueza e naturalidade. E ao escrever essa história, fecho com uma frase do livro Duna, de Frank Herbert: “O medo é assassino da mente”.
Carlos – Após uma noite muito agradável na fazenda do Sr. Guido, que fica às margens da represa de Salto Grande, seguimos em direção a barragem da usina hidrelétrica de Americana, mas com o detalhe que devido a quantidade de aguapés (uma espécie de planta aquática de superfície) o trecho de chegada na usina estava intransponível e tivemos que contar com o auxílio do carro de apoio.
Chegamos na barragem por volta das nove da manhã e solicitamos a entrada na mesma, que foi negada a princípio. Após algumas negociações e telefonemas fomos recebidos e tivemos a oportunidade de conhecer a usina inteira com o acompanhamento do responsável pelo período, com fartas explicações e muita paciência para nossas perguntas constantes .
Esta usina foi inaugurada em 1949 e gera o máximo de 30 MegaWatts de energia e é administrada pela CPFL. No local existe uma pequena vila que acomoda os seus funcionários e famílias. Existe um Museu aberto ao público que vale a pena conhecer.
É importante ressaltar que esta represa é formada pelas águas do rio Atibaia e devido a grande quantidade de poluentes, principalmente esgoto domiciliar das cidades de Campinas e Paulínia e Também uma parte de suas indústrias, e uma grande quantidade de terra de erosões a represa sofre um rápido processo de assoreamento (diminuição de sua profundidade e perda de volume de água), comprometendo assim o funcionamento da usina em um futuro próximo.
Colocamos a canoa na água somente às 11:00 hs e seguimos até a junção dos Rios Atibaia e Jaguarí, a 800 metros da barragem.
Tudo tranquilo até a primeira corredeira, que passamos fora da canoa, apenas segurando pelas margens. Foram mais 3 das quais 2 passamos remando pela corrente sem mais problemas, na outra um fato interessante ocorreu: Chegamos próximos a corredeira, como sempre fazemos, para analisar a situação e desci na margem seguindo a mesma até chegar junto ao início das pedras. Percebemos que não seria possível descer remando e vimos uma pequena escada ao lado que parecia dar acesso a um caminho que chegava abaixo da corredeira. Estava certo, mas dei de cara quando subi a escada, com uma celebração de macumba, com direito a caveira de cera, velas, cálices com um líquido vermelho, etc. Imediatamente fiz meia volta e fui contar ao Alessandro, que achando graça foi conferir também. Voltou correndo dizendo que os celebrantes estavam receosos e tinham nos visto. Subimos novamente na canoa e seguimos para o outro lado do rio. Ficamos nós de um lado e os religiosos ou sei lá o que do outro, um de olho no outro. Bem, resumindo, decidimos descer lá no local da celebração mesmo e descobrimos que eles estavam tão receosos como nós e acabamos conversando bastante e até fazendo algumas fotos com o grupo, que nada mais eram que humildes pessoas com fé em que alguma coisa pode dar certo nas suas vidas em um país com tantas vergonhosas desigualdades.
Seguimos e encontramos um local para armar um acampamento em um rancho, onde fomos bem recebidos pelo caseiro.