Dia 042 – Ilha Grande > Guaíra
Percurso: Rio Paraná
Início: (no dia anterior) Ilha do João Russo, S 24º04.510′ W 054º15.306′
Passamos a noite à deriva no rio
Final: Guaíra, Clube de Pesca & Bar da Tininha, 24° 4.564’S 54° 15.297’W
Percorrido durante a madrugada: 41.8 Km
Total acumulado: 1213.6 km
Madrugada Sofrida à Deriva no Rio
Carlos – Chegamos às 11h30min em Guaíra, o lugar é muito interessante. Como estávamos morrendo de fome, paramos no bar e lanchonete da Tininha, que é uma senhora que cuida do bar junto com o marido e os filhos, é tipo um clube de pescadores, bem em frente de onde era as Sete Quedas. A cidade tem a metade do número de habitantes que tinha antes, devido ao enchimento da represa de Itaipu. Após comermos, paramos para fazer a gravação do diário de bordo do dia 022 até o dia 042, que estamos mandando para Campinas para atualização da página.
Alessandro – Ontem a noite resolvemos fazer algo diferente da rotina diurna de remadas. A gente experimentou passar a noite à deriva no rio. Depois que partimos da Ilha do João Russo nós remamos até escurecer, e a hora que deu sono nós deixamos a canoa correndo com o rio. Chegou uma hora que, mesmo se a gente quisesse, não íamos conseguir encontrar alguma prainha pra parar. Então assim foi: derivando a noite madrugada adentro.
Quando escureceu esfriou muito mais do que a gente havia previsto. Ainda em terra, na hora que a gente separou as coisas pra ter com a gente durante a noite, era o momento de separar os agasalhos mais pesados. Mas não foi o que aconteceu. Eu peguei apenas uma blusa leve. A roupa “mais quente” ficou dentro de uma das bolsas herméticas amarradas no meio da canoa. Sem ter uma praia onde a gente pudesse ficar em pé ao lado da canoa para acessar e abrir essas bolsas, o acesso era praticamente impossível. Mas eu me conformei, pois não tinha muito o que fazer. Chegou uma hora que começou a dar sono e fazer um frio bastante desconfortável, daqueles que te mantém agoniado e acordado.
Derivando no escuro, em meio à névoa que filtrava as luzes isoladas de raras lâmpadas solitárias e fracas em margens distantes, a gente às vezes escutava o som de algum gerador a diesel batendo ritmadamente e abafado na distância. O frio foi piorando com o passar da noite, e a opção que encontramos foi usar as lonas plásticas que ficam armazenadas dentro da canoa perto de cada um, e nos cobrirmos com elas.
Pra mim foi um exercício de Yoga avançada tentar me deitar no chão da canoa na minha “cabine”, com a cabeça encaixada na ponta da frente da canoa e as panturrilhas apoiadas no banquinho e os pés apoiados onde conseguissem encontrar algum conforto em cima da bagagem que costuma ficar atrás de mim quando eu remo durante o dia. Mas no sono e na miséria a gente se ajeita, e dobrado no fundo da canoa me cobri com a lona plástica fria e molhada de sereno, para dar pelo menos uma cortada no vento. E assim, se ajeitando e se protegendo como podia do ar úmido e gelado, cada um dormiu em seu nicho na canoa.
Nem tinha mais ideia de que horas eram. Acordei de repente com algo raspando e fazendo um barulho alto na lona acima de mim e sentido a canoa parando de maneira bruscamente desacelerada. Tentei tirar a lona mas senti ela prensada contra meu corpo e meu rosto. Estiquei o braço pra fora e apalpei o que pude pra tentar entender a situação lá fora: Um emaranhado denso de galhos e folhas! No embalo da canoa à deriva, a gente acabou deslizando para debaixo dos galhos das árvores rentes à água. Naquele escuro e sem muito o que enxergar mesmo acendendo as lanternas, pois os galhos estavam na cara, entendi que o esquema era “dar ré”, e sair por onde entramos. Então fomos nos puxando pelos galhos, deitados protegidos no fundo da canoa, e remando como dava, até sair de baixo das árvores. Uma vez liberados, remamos até o meio do rio, e em breve voltamos a nos acomodar, cada um em seu espaço e a dormir novamente, ficando a canoa solta mais uma vez, levada pelo caminho da correnteza tranquila e constante do Rio Paraná. Essa situação que acabei de descrever aconteceu umas três vezes ao longo da noite.
Outro momento que acordei meio perdido no meio da madrugada foi quando despertei na base do susto com o Carlos chamando, exclamando alto algo incompreensível. Achei que eu não estava entendendo o que ele dizia porque a lona estava abafando o chamado. Levantei rapidamente me sentando no banco e simultaneamente retirando a lona de cima de mim. Ao mesmo tempo olhando tudo em volta tentando enxergar na escuridão o que estava acontecendo de ameaçador, e ao mesmo tempo pedindo pro Carlos repetir o que ele disse. Mirei a lanterna em sua direção e ele estava debaixo da lona dele. Continuou falando. Coisas sem nexo. Ele estava sonhando e falando dormindo, meio sonâmbulo. Me cobri e voltei à tentativa de dormir, torcendo para que em seu sonambulismo ele não rolasse para dentro da água ou até mesmo virasse a canoa.
Essa noite foi longa, sofrida e cheia de interrupções. Quando a claridade do dia começou a aparecer foi um alívio; Sensação de que o pior já passou. Assim que clareou mais um pouco, nos arrumamos nos bancos e voltamos a remar pra tentar esquentar um pouco. E já que estávamos no embalo, mesmo quando o dia nublado amanheceu completamente e pudemos enxergar algum lugar para parar e pegar os agasalhos, a gente continuou acelerado e só parou quando chegamos em Guaíra. Era aqui, Guaíra, o início do lago da enorme represa de Itaipu. Nessa noite que passou percorremos o último trecho de correnteza no rio Paraná na etapa brasileira da expedição. Esse trecho foi experimental e foi desconfortável.