Dia 076 – Bella Vista > Lavalle
Percurso: Rio Paraná
Início: Bella Vista, km 1060, 28° 30.489′ 59° 2.994’W
Final: Lavalle, km 995, 29° 1.230’S 59° 10.997’W
Hoje: 60.6 km
Total Acumulado: 2242.7 km
Uma Cidade Sendo aos Poucos Devorada Pelo Rio
Carlos – Um dia calmo e navegação tranquila. O trecho pretendido era longo e aproveitamos para ganhar alguns quilômetros de crédito. Em alguns trechos devido ao vento a favor e a forte corrente conseguimos desenvolver uma velocidade de até 14 Km/h, que pode parecer pouco mas para a canoa realmente é bastante, o dobro do normal.
O trecho é marcado por paredões muito bonitos de diversas tonalidades devido ao tipo de terra ou areia que o formava.
Lavalle, uma cidade que tem como característica o fato de estar sendo “devorada“ pelo rio Paraná e já ter perdido metade de seu tamanho original, estava ainda a uns 10 km de distância e decidimos parar – a dificuldade era achar um local no mínimo adequado pois só se via banhados e matas tipo capoeira ou muita lama. Acabamos chegando na cidade e fizemos acampamento na frente de uma casa à beira rio de propriedade do Carlos e da Mabel.
Alessandro – No final do dia, quando a gente já tinha montado o acampamento e já havia escurecido, eu precisei ir a algum mercado para comprar algumas comidas e reabastecer nossos mantimentos, e também achar um telefone público para fazer algumas ligações pro Brasil. A Argentina se encontra em um período de crise e isso fica mais notável quando se caminha à noite pelas ruas e a gente vê claramente que vários postes com iluminação pública estão desativados, para economizar energia. A iluminação pública noturna é bem reduzida, dando um aspecto até um pouco deprimente. Nesse clima eu andei pelas ruas do bairro até achar um mercadinho, como uma ilha iluminada na escuridão. Fiz as compras e utilizei o telefone público no mercado para ligar pra casa e dizer que estava tudo bem. Depois tomei o rumo de volta, carregando uma sacola cheia de compras em cada mão. Pra eu chegar até o mercado não foi um caminho direto. Fui perguntando e dobrando esquinas e seguindo por onde me indicavam. Então pra voltar pra beira do rio eu também precisei parar e perguntar o rumo.
Me aproximei de um senhor que estava parado em pé na calçada olhando pra mim me vendo aproximar dele. Parei diante dele e cumprimentei e em seguida perguntei para que lado fica o rio, por favor. Ele olhou pra mim, baixou os olhos para as sacolas e olhou de volta pros meus olhos e indagou assustado: “Es un ladro!??” Eu de cara não entendi e fiz cara de “repete por favor”. Então ele falou mais alto e começou a gesticular os braços – “UN LADRO, UN LADRO!!” – Assustei com a reação insensata dele, me pegou de surpresa, e falei que não, que eu estava voltando das compras, que tinha ido comprar comida. E o meu espanhol estava bem claro, eu não tinha problema de me fazer entender. Por um momento fiquei preocupado que pessoas viessem correndo acreditando nele, e até eu me explicar eu estaria em uma situação delicada, diante de um idoso pedindo ajuda e eu sendo a ameaça aos olhos de terceiros . Ele gritava mais alto me chamando de ladrão e balançando os braços acima da cabeça, para chamar a atenção de quem estivesse ao alcance, como se pedindo socorro. E foi então que eu logo olhei em volta para ver a reação ao nosso redor, e percebi uma senhora debruçada relaxada na janela da casa na qual a gente estava em frente, assistindo a cena toda, indiferente. Eu olhei pra ela e disse “A senhora vê que não sou ladrão, não é?” e a reação dela foi de balançar a cabeça e num gesto muito claro me fazer entender “Ignora que ele é louco”, dispensando ele com um aceno de mão em sua direção. Foi então que me dei conta que eu fui pedir informações justamente para o louquinho da rua, e claro que a reação dele não poderia ser muito diferente. Eu sinceramente tive vontade de dar um tapa na cabeça do velho só pelo susto que ele me fez passar, mas claro que não fiz nada. Continuei andando e deixei ele pra trás, e ele continuou gritando “Ladrão, Ladrão, socorro!”, sendo totalmente ignorado por quem quer que fosse que o tivesse escutando.
Essa situação me fez refletir bastante na hora. E eu me lembrei dela em várias viagens que fiz depois. Penso como a gente se sente, e é vulnerável quando estamos num ambiente estranho, longe de casa, no meio de gente que talvez não vai ter a ponderação de esclarecer qualquer coisa antes de te julgar em uma situação inusitada, e se aproveitar da sua vulnerabilidade.
Esse episódio me faz pensar que não necessariamente uma pessoa louca pode reagir de maneira insana num caso de confronto com gente, mas quaqluer pessoa astuta, egoísta ou mal intencionada pode agir de maneira manipuladora e se aproveitar de sua vulnerabilidade num dado momento, onde você é o completo estranho.